Livro "A Metamorfose" de Franz Kafka

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7/7/20252 min read

Poucas obras literárias conseguiram atravessar o século XX com tanta força simbólica e interpretativa quanto A Metamorfose, do escritor tcheco Franz Kafka. Publicada pela primeira vez em 1915, essa novela curta permanece atual e desconcertante, provocando reflexões sobre identidade, alienação, inutilidade e o absurdo da existência.

A premissa é simples e, ao mesmo tempo, profundamente perturbadora: Gregor Samsa, um caixeiro-viajante comum, acorda certa manhã transformado em um inseto monstruoso. Não há explicação para o que aconteceu. Não há lógica nem causa aparente. Kafka não se interessa em explicar o que transformou Gregor, mas sim em explorar as reações diante do inusitado – especialmente as do próprio Gregor e de sua família.

A narrativa se desenvolve inteiramente dentro do apartamento da família Samsa. Inicialmente chocados, os pais e a irmã de Gregor tentam lidar com a nova realidade, mas à medida que o tempo passa e o estranhamento se intensifica, o protagonista é progressivamente excluído, isolado e, por fim, esquecido. O absurdo da transformação se torna apenas o ponto de partida para um retrato da solidão humana e da fragilidade das relações sociais.

O grande impacto de A Metamorfose está em sua alegoria. Kafka constrói um cenário que beira o surreal, mas onde tudo é tratado com naturalidade. Ao transformar Gregor em uma criatura repugnante, ele desvela a desumanização do indivíduo quando este deixa de ser útil. A história convida o leitor a refletir sobre como o valor das pessoas é frequentemente condicionado ao que elas podem oferecer – financeiramente, emocionalmente ou socialmente.

Gregor, antes o provedor da casa, é tolerado até o momento em que perde sua capacidade de trabalhar. A partir daí, torna-se um peso, um incômodo, um fardo. A família, que antes dependia dele, passa a ignorá-lo e desejar sua ausência. A figura do inseto se torna o símbolo da exclusão, da perda de identidade e da alienação total do ser.

Kafka utiliza uma linguagem econômica, objetiva, quase fria – e isso amplifica o desconforto do leitor. Não há melodrama, não há clímax explosivo. A tragédia de Gregor se arrasta silenciosa, melancólica e inevitável. O espaço físico vai encolhendo à medida que a vida de Gregor se apaga. Do quarto fechado onde permanece até sua morte, o personagem deixa de ser alguém para se tornar algo – e isso é o mais inquietante da obra.

Apesar de ser uma narrativa curta, A Metamorfose é densamente simbólica. Pode ser lida sob várias lentes: psicanalítica, existencialista, social ou até política. É uma obra aberta, que se reinventa a cada leitura. Para alguns, Gregor representa o homem moderno esmagado pelas engrenagens da sociedade. Para outros, sua história reflete a angústia de quem vive à margem, incapaz de se adaptar às normas impostas.

A Metamorfose é, acima de tudo, uma obra de desconforto. Kafka não pretende consolar o leitor – ele quer inquietá-lo. E consegue. Mais de cem anos após sua publicação, ainda somos atingidos pelo mesmo incômodo: e se fôssemos nós transformados? E se, de um dia para o outro, perdêssemos nossa função no mundo? Seríamos amados? Seríamos lembrados?

Este é um livro que não se esquece. Uma leitura essencial para quem busca não apenas conhecer um clássico da literatura mundial, mas se confrontar com as questões mais profundas da condição humana.